8 de abril de 2013

Miguel Marques e A Luta Pela Vida

Continuando a série de transexuais Female-to-Male, venho hoje contar a história deste menino que sofreu, mas aprendeu, cresceu e venceu. Um transhomem paulista universitário, de família conservadora, infância turbulenta e coração enorme. Leiam abaixo em suas próprias palavras.

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Olá, meu nome é Miguel dos Santos Marques, tenho 20 anos, sou estudante de estética e cosmética e sou um homem transexual. Essa identificação vem desde a infância, na fase em que passamos a ter conhecimento das coisas e do que somos. Desde a infância já nos é ensinado o binarismo de gênero, então obedecendo a isso era imposto a mim que ''o certo'' seria ficar junto com as meninas, brincando com as meninas e tendo um comportamento de menina, mas o meu instinto não permitia que conseguisse isso e aí então começa o meu sofrimento interno.




Nasci em São Paulo, minha mãe é da Bahia e meu pai de São Paulo também, quando jovem ela se mudou para São Paulo conheceu meu pai e para resumir, se casaram e me tiveram. Meus pais se separaram quando eu tinha uns 5 anos de idade, nessa separação presenciei agressões entre os dois, presenciei meu pai traindo minha mãe com outra mulher, coisa que foi desnecessário presenciar. Mas enfim, desde essa idade já me sentia diferente das outras crianças e não sabia como falar isso para os meus pais, estavam acontecendo tantas coisas ao mesmo tempo, tanta confusão, tanto trauma, tanta dor, que me tornei uma criança apática, eles não me davam atenção e nem sequer se preocupavam em me perguntar como me sentia em meio a tudo isso, nunca tive voz. O que minha mãe fez como forma de reparar o dano psicológico causado a mim, foi me levar ao psicólogo durante minha infância, mas o que realmente precisava era que ela me escutasse, precisava falar o que sentia mas sempre tive medo dela. 

Sempre tive medo dela porque ela sempre foi uma mulher muito autoritária, nervosa e irredutível diante dos preconceitos dela, teve uma criação muito tradicional e depois da separação começou a se apegar muito ao catolicismo como forma de amparo às dores dela e isso a cegou de uma maneira que até hoje ela coloca a religião acima do amor de mãe por mim. Meu pai tem um papel mais ausente na minha vida, depois da separação vez em nunca ia me visitar.

Os anos foram se passando e minha mãe percebendo que havia algo de diferente em mim, sempre percebi que ela percebia por conta das suas atitudes: As imposições de usar vestidos, brinco, e de jamais deixar que cortasse o cabelo. Ela impunha a mim usar um cabelo enorme, que ia até a cintura. Isso tudo era torturante para mim, me angustiava por dentro e não entendia porque sentia toda essa repulsa, sendo que ''era uma menina'' e obviamente deveria sentir-me confortável e feliz com isso. 

Na adolescência as coisas começaram a ficar ainda mais dolorosas para mim, é aquela fase em que você está procurando respostas sobre tudo e inclusive, sobre você mesmo. A cada dia que passava percebia que aquele corpo de mulher, aquele nome, aquelas roupas que me eram impostas a serem vestidas, não condiziam com o que eu era. Passei então aos poucos a me vestir mais masculinamente e a me permitir me comportar mais como me sinto de verdade, como homem. Porém, isso implicou em uma série de problemas. Estudava em um colégio de freiras e nesse meio existe muito preconceito e muita cobrança, por ser um meio religioso. Minha mãe começou a ser chamada para conversar, escutar críticas sobre minha aparência masculina, os porteiros do colégio, os alunos, todos iam até ela falar de mim, que eu parecia um menino e que ela precisava dar um jeito nisso. Toda vez que isso acontecia, ela chegava em casa transtornada, me gritando, me batendo, dizendo que não aguentava mais escutar essas coisas e me questionava sobre o que eu era, se era homossexual e claro, sempre negava, porque de fato não era. Mas ao mesmo tempo questionava-me sobre isso "Mas poxa, eu gosto de mulher, então devo ser homossexual, não existe outra explicação.." só que não sentia-me homossexual, sentia-me um homem heterossexual preso num corpo de mulher, sendo injustiçado num corpo feminino e não sabia como explicar aquilo. Até então, não sabia que gênero não tinha ligação com orientação sexual.

A cada dia mais minha mãe me pressionava por respostas, minha família, o meio escolar, a sociedade. Eu era bastante confundido com homem, e isso cada vez mais irritava minha mãe, juntamente com os comentários preconceituosos que ela escutava, e ela sempre deu muito mais valor ao que as pessoas pensam, ela tem uma preocupação muito grande com a imagem dela, então ela tentava a todo custo me tirar uma resposta agredindo-me verbalmente e fisicamente cada vez mais, chegou ao ponto de me fazer ameaças de morte, de vir com faca para tentar me matar, de atirar as cadeiras de casa em mim, bater minha cabeça e entre tantas coisas horríveis que uma mãe nunca deveria fazer com um filho. Fui chamado de aberração, demônio, os orientadores espirituais dela diziam que eu tinha um demônio dentro de mim, ela me levava para igrejas católicas, evangélicas, para que me fizessem orações de libertação, tentava de tudo para me ''consertar'' e parar de ser apontada pelas pessoas. Ela não se preocupava comigo e sim com a imagem dela.

Quando passei a ter contato com a internet, a primeira coisa que procurei buscar foi: ''Mulheres que se sentem homens'' e nisso me apareceu uma lista de respostas sobre isso, e a noticia que me chamou atenção foi de um homem grávido, abri aquela página e comecei a ler sobre ele e saber como aquilo foi possível e a partir daí que descobri que se tratava de um homem transexual, e nesse dia a minha mente clareou e finalmente tive uma resposta sobre o que eu era. Percebi que não era o único, e que o que eu sentia era fato: Sou homem. Um homem que nasceu no corpo errado.

Ao mesmo tempo que foi um alívio descobrir o que de fato era, foi um desespero de não saber como explicar isso para minha mãe e pedir ajuda. Minha atitude foi de ficar em silêncio pois temia muito a ela. E ela continuou com as cobranças de respostas, até que tive que mentir e dizer que era homossexual. Nesse dia fui espancado, proibido de sair para qualquer lugar, perdi as chaves de casa, só podia sair de casa para ir ao colégio e voltar. Ela me privou de qualquer contato desnecessário com as pessoas, mais precisamente, mulheres. Fui ficando cada vez mais depressivo por dentro, tentei me matar inúmeras vezes, perguntava a Deus porque tinha que passar por isso, porque eu e porque uma mãe tão intolerante. Pedia para morrer todos os dias.

Todos os dias tinha mais certeza do que eu era, lembrava-me que quando criança a noite fazia uma oração e pedia para Deus para acordar no dia seguinte com o corpo de menino, e na minha inocência de criança achava que iria acordar no outro dia mudado. E quando acordava e via que nada mudou, começava a chorar escondido.

Em relação aos meus relacionamentos amorosos, foram sempre raros e sem compromisso porque não tinha como manter compromisso com alguém sendo que vivia em um cárcere privado dentro de casa. Mantinha meus contatos por internet e quando saia do colégio encontrava com ''tal'' pessoa bem brevemente, ou então faltava aula escondido, fingia que ia ao colégio e desviava o caminho, tive que passar minha adolescência driblando minha mãe. O problema é que ela é bastante esperta e sempre deixava pessoas me vigiando, e como na época morava em um interior da Bahia, todos se conheciam, e essas pessoas contavam que me viam em tal lugar e quando chegava em casa levava uma surra das grandes. 

Nos meus 17-18 anos, conheci uma garota pela internet, que morava em Salvador, próximo ao interior que eu morava, não podia encontrá-la pois vivia preso, então mantemos contato por meses pela internet. Até que um dia ela se dispôs a ir até minha cidade me ver e a minha parte era tentar escapar de casa para vê-la. Conseguimos isso.

Para resumir mais a história, essa garota foi a coragem que me faltava para me libertar, depois de tê-la conhecido me senti revigorado, com vontade de viver, me apaixonei por ela e isso fez com que eu lutasse para ser feliz e ser quem eu sou. Saí de casa, pedi que minha mãe me desse minha parte da pensão que recebo do meu pai e me mudei para Salvador, como modo de ficar perto dessa tal garota também. Quando a conheci não tive coragem de contar que se tratava de um homem transexual, mas precisava contar, ela era heterossexual e estava confusa também por estar gostando de mim, achava que estava se tornando lésbica por isso. 

Começamos a namorar, ela foi/é minha primeira namorada. Meses depois contei a verdade sobre mim pois estávamos numa relação muito confusa e ela estava muito confusa, ainda mais do que eu. Ela reagiu extremamente bem e me agradeceu por ter clareado a mente dela. Depois que contei isso para ela, resolvi abrir o jogo para minha mãe e para meu pai, liguei para os dois e contei. Minha mãe ficou um tempo em silêncio no telefone e disse que sabia que eu tinha lutado contra isso, que percebia, mas que ao mesmo tempo não aceita essa situação. Já meu pai foi mais positivo com a notícia, ele sempre teve uma mente mais aberta, apesar de ser um cara instável. 

Atualmente moro em Salvador, minha namorada hoje mora comigo também e é um apoio muito grande nessa caminhada difícil. Tenho 4 meses e meio de testosterona, sempre tive uma aparência física bem masculina e agora ainda mais, porém mesmo assim é bastante difícil encontrar um emprego, fico bastante desanimado com essa falta de oportunidades pois só através de um trabalho irei conseguir dinheiro para as minhas cirurgias, mas continuo correndo atrás. Na faculdade foi permitido o uso do meu nome social, porém com o de RG em parênteses, enfim, isso é Brasil. Me prometeram sigilo total do nome de RG, mas sei que mais dia, menos dia alguém irá ver. Temos que nos submeter a certas ridicularidades e traumas até trocar os documentos civis. Outra dificuldade é o acesso a saúde, particularmente em Salvador não se encontram endócrinos que atendem homens trans, sou obrigado a botar minha saúde em risco e me hormonizar sozinho. Mas sinceramente, estou botando minha felicidade e bem estar do presente em primeiro lugar, se for para acontecer algo de bom ou ruim, irá acontecer e seja o que Deus quiser, o que a vida quiser. Mas não estou parado, corro constantemente atrás de ajuda.

Bom, isso é um pouco da minha vida e do que vivo. Vejo essa minha realidade como um aprendizado e sempre penso que existem pessoas que passam por situações ainda piores na vida, então crio forças para seguir. Não sou o único que sofre. Cada um carrega a sua cruz. Essa foi a que me foi imposta pela vida, infelizmente. Não serei hipócrita em dizer que sou feliz por ser transexual, sou triste por isso, sou magoado e amargurado. Mas todos os dias tento esquecer essa dor e buscar minha felicidade, estou lutando pela minha vida, pelos meus direitos. Acima de tudo, sou um ser humano.

Um abraço,
Miguel.

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Fiquei emocionada de diversas formas com essa história, e me identifiquei em vários pontos. Ambas nossas mães eram fisicamente agressivas e autoritárias, apesar de isso ter sido um problema bem menor para mim e eu ter me rebelado contra isso mais cedo, provavelmente pela minha condição física. Ambas nossas namoradas são soteropolitanas e um dos maiores motivos pelos quais sobrevivemos e vencemos. Ambos nossos pais são ausentes mas pagam pensão e, com isso, nos sustentamos, apesar do pai dele claramente ser um pouco menos ausente que o meu.

Ambos apanhamos da vida e batemos de volta. E vencemos.

E ambos estamos procurando emprego... uaheiuhiaehuiae

Quem quiser falar com esse rapaz fantástico, seu facebook é este aqui.

Beijos,
Mayra

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