19 de novembro de 2012

Pão e Circo

O título pode aludir a uma discussão sobre política brasileira, mas acredite, não é. Tenho uma breve reflexão para fazer sobre a transsexualidade.

Eu conheço um número infinitamente superior de pessoas transgêneras realizadas das classes sociais C e D do que da A e B. E sei que isso poderia ser argumentado por uma simples comparação às proporções de nossa sociedade, mas levemos em conta por um segundo que eu conheço as pessoas através da internet, e que as estatísticas brasileiras mostram um número muito pequeno das classes C e D que tem acesso à internet e facilidade de uso de redes sociais.



Esqueçamos os números e contas por um segundo. Gostaria de sugerir um outro fator influenciador da transição - dinheiro. Não no sentido benéfico de poder pagar qualquer tipo de custo da transição, mas no sentido pernicioso de comprar a diversão, a distração, a superficialidade que ocupa a alma com a beleza externa para que ela não se incomode com a falta de beleza própria.


Estive em Ipanema esses dias após meses sem passear com calma pelo bairro. As ruas são animadas, os carros são novos, os homens são esculpidos e as mulheres, brilhantes e cativantes. Os bares são movimentados, os restaurantes são chiques, as lojas são bem montadas e a praia é cheia de visões, naturais e humanas, a se admirar discreta mas indefinidamente. 

Esse tipo de beleza multifacetada, diversa, afoga a alma. Afoga as mágoas e dores interiores em um mundo de sensações externas reconfortantes. Assim como deitar com a pele toda queimada de sol em um edredom de algodão egípcio em um comodo condicionado é mais fácil do que deitar-se da mesma forma em um lençol de crochê num cubículo infernalmente quente. Mas a pele continua queimada, os tecidos continuam deteriorados, os órgãos continuam sob risco de infecção. Sem a pessoa sentir.

A minha observação daquele bairro tão pertencente à minha alma se soma a outras, sobre a condição financeira de conhecidos e conhecidas. A maior parte de meus contatos é composta de transgêneros em algum canto do espectro. Ao conversar com muitos deles e delas, percebi que pessoas de menor capacidade financeira muitas vezes superam obstáculos montanhosos, quando ricos e confortados tropeçam em pequenos degraus. Ao discutir os motivos impeditivos são apresentados castelos sobre a areia: famílias construídas, empregos conquistados e amigos atraídos por uma imagem falsa, opressiva e extremamente dolorosa que a pessoa constrói - e mantem - simplesmente pelo medo da ruína.  De perder aquilo que tem, seja de emotivo ou material, por mais falso e irreal que seja.

Por todas essas ocasiões, aviso: tentar explicar como é a vida de uma trans pós transição para uma trans pré transição é como explicar pinturas para cegos ou músicas para surdos. Você precisa atravessar a porta para, somente lá  perceber tudo aquilo que não tinha antes. E posso lhes afirmar com toda certeza: antes da transição eu nunca amei alguém de verdade. Nunca fiquei realmente agradecida por um presente, feliz por uma conquista, ansiosa por uma promessa ou surpreendida por uma notícia. Antes da transição nem mesmo as emoções destrutivas eram verdadeiras - a raiva e o ódio que eu possuía e deixava escapar em momentos onde eu era contrariada ou ofendida eram mal direcionadas e falsas. Sua origem repousava na simples frustração de não poder mostrar para os outros aquilo que via dentro de mim, e o resultante tratamento masculino que me causava rancor pelas palavras e, ao mesmo tempo, irritação comigo mesma, pois não pudia sequer culpar terceiros por suas facadas despropositadas, já que eu mesma jamais havia esclarecido as coisas como elas eram, "posto os pingos nos is".

Eu perdi algumas coisas com a transição.  Meu padrinho e o tratamento cordial de boa parte da família. Mas eu sei perfeitamente que o que perdi não foram parentes, eu perdi a imagem falsa que tinha deles - afinal, quem se afastou de mim ou me agrediu são homofóbicos e transfóbicos sem razão ou coerência em seus preconceitos que, de outra forma, estariam contaminando meu espírito com suas podridões necróticas.

Após a transição, a estrada é bem diferente de como era antes, e o conhecimento disso causa medo em muitas trans. Tememos a mudança. Mas tenha certeza - se você tem condição de se sustentar, tudo que vai perder são seguidores decompostos e maldições ambulantes.

Beijos,
Mayra

9 comentários :

  1. Concordo em gênero, número e grau.
    As imagens falsas somem da vida como que por mágica.....vc descobre quem é quem. Mas tb tem a parte boa, ótima eu diria: Surgem pessoas que se identificam com a pessoa que vc realmente É.

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  2. Sim, claro, a parte boa disto tudo. Aliás, a parte além de vivermos como quem na verdade somos. É que a gente descobre quem são realmente as pessoas com quem podemos contar. Pessoas que valem a pena, etc.

    Sabe, adoro ler as suas postagens. Embora, muitas vezes, me limito a ler e a refletir sobre as mesmas. E mais nada.

    Há poucos meses que passei a cogitar que eu seja trans. MtF, não é. Só que estou na etapa de eu mesma conseguir me aceitar. São cada vez mais dúvidas e menos certezas. Mas, ainda assim, teria a parte dos outros que seria complicado. A despeito de que poderia ser menos complicado do que eu imagino.

    Não tenho nenhum jeito de mulher. Sou um homem bem normal. Mais cara de garoto, mas ainda homem. Ninguém, entre os que conheço e convivo, imagina o que eu sou (ou, que posso vir a ser, sei lá).

    Entre outros indícios, comecei a constatar que sou MtF em coisas do tipo nunca ter muito me encaixado no mundo ao meu redor, nunca ter sido feliz e estado satisfeito em 29 anos de vida, nunca ter tido nenhum relacionamento satisfatório (no final, nunca nenhum valeu a pena: um fracasso total) e isto dos raros relacionamentos que consegui ter, etc.

    Desculpe-me, mas foi meio que um desabafo. Infelizmente, não tenho com quem possa conversar e me abrir. Já até fui em psicóloga. Só que não é a mesma coisa. Amigos, que nem tenho.

    Ana Carolina.

    Obs. 01: estou no meio entre a classe A/B e a classe C/D.

    Obs. 02: parabéns à autora por conseguir reduzir aos seus textos estas reflexões.

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    1. Essa questao da satisfaçao com os relacionamentos e com a vida é crucial. A questao de namoro, por exemplo... nossa, que mudançA violenta ser aceita e amada com o corpo e imagem que quero ter, com a identidade que quero passar... *sigh*

      Eu também não tinha nenhum jeito feminino e, agora ja mulher, sou meio tomboyzinha. E descobri que isso nao tem problema, esta tudo bem =) Que o meu problema nao eh ser masculino ou feminina, mas ser masculino ou masculina =)

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  3. Ao menos falando de mim, a desconstrução de uma vida estruturada e aceita perante à sociedade (sem preconceito e estavel) vai muito além do meu estado emocional/psicologico.
    Uma adpatação da minha vida atual a minha realidade interna signaficaria perder, como você mesmo disso, algumas partes importantes dessa vida que tenho e que não necessariamente gostaria de perder. São estes fatores que tento (hà 32 anos) equacionar e não consigo, emocialnamente me indentifico muito com o teu texto principalmente a parte que fala da falta de gratidão pelo o que tenho, no entanto esta mesma falta de gratidão se tornou um degrau enorme à superar, afinal consegui uma vida, um estabilidade que muitos gostariam de ter e eu aqui não grata por tudo isso e mais ainda, querando joga-la no lixo e porque? Para poder mostrar ao mundo que sou mulher e que eles estavam errados sobre mim(nada mudaria, somente o meu olhar sobre mim mesma e a batalha diaria que passaria a viver) , tendo que passar o resto da vida me justificando e explicando minhas decisões as mais variadas pessoas, não mais saber que futuro nem posição na sociedade passaria a ter depois de uma modificação tão importante. Este é o embate que vivo, acho que não sou a unica, seguir minhas emoções e deixar-me viver, aceitar esta humanidade que perdi ou que estou perdendo, voltar a ter gratidão, pelas coisas mais simples, me permitir amar ou continuar a seguir transparente mas protegida pelo conforto de fazer parte de uma sociedade! Sinceramente, se deixar o emocinal falar, a decisão seria super simples! Hoje me arrependo de não ter tomado esta decião antes e por ter realmente achado que poderia controlar a mim mesmo, o pior é saber que esta é uma batalha perdida de avanço, é a unica perdordora sou eu mesmo. Agora, uma coisa importante vem mudando nessa conta, e isso devo ao seu blog e muitos outros, entender que sim existe uma vida e um lugar na sociedade para pessoas como nos, que é solidão não é exatamente uma obrigação. Beijos e desculpa pelo desabafo.....

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    1. "Hoje me arrependo de não ter tomado esta decião antes e por ter realmente achado que poderia controlar a mim mesmo,"

      Esse é o ponto chave, e por isso acho fundamental que as pessoas percebam que disforia de genero nao é controlavel, contornavel ou aceitavel. Ou voce consome ela e a torna parte de ti ou ela consumira voce.

      Beijos, e sinta-se sempre livre para desabafar aqui =)

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    2. Sério, sempre achei que pudesse controlar tudo sobre mim, sempre fui capaz de controlar a mim, desde fechar a boca à fingir gostar de algo...não sei se sou assim por ter tido que esconder minha situação trans ou por ser assim consegui escondê-la, de todas as maneiras, hoje não sou mais ninguém, sou um espelho do que as pessoas esperam de mim ao limite da falsidade, não sei nem mesmo mais do que realmente gosto, vejo meus amigos como transitorios e sem importância...acho que dai vêm toda esta ravia, angustia. Como vc disse, a transexualidade não pode ser controlada e tentar fazê-lo acabara transformando você em um estranho para você mesmo e um estranho solitario e mal-humorado, talvez até violento. Sinceramente, penso nisso todo dia, não gosto da pessoa que estou tornando-me e sei que insistir neste pseudo-controle é nada mais que uma falsa esperança de status-quo e arrependimento certo pelo tempo perdido quando tudo se tornar visivel à todos!! Sem falar que até este momento, terei provalmente afastado a todos que hoje estão ao meu redor tb!!

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    3. Entao vamos logo fazer essa transiçao ai, fia?
      Niniguém pode mudar o começo, mas todos podem escrever um novo final e talz...

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  4. Você escreveu pra mim isso é? A gente tá em sintonia gatinha, porque sempre tive esta visão sobre o dinheiro, o conforto e as pessoas e frustrações comportamentais que eles trouxeram para a minha vida... É engraçado eu ter a constatação do fato e até a digamos 6 meses atrás jamais tinha conseguido quebrar este cordão umbilical e ainda tô aprendendo e tentando devagarzinho... Seu texto me emocionou e me deu mais corajem... Obrigada! :-)

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    1. Fico feliz de saber que posso ter esse efeito positivo =) Imagino que outras meninas percebam isso também, e os comentarios confirmando essa visao ajudam as leitoras a vasculharem suas proprias vidas.

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